Diálogos

Arte Geralt
Frio danado. Mesas vazias, música se arrastando pelo ar em notas de um trompete mumificado pela estática da gravação antiga, luzes mortiças num ar imóvel parcamente aquecido milímetros ao redor das lâmpadas incandescentes. Samihasa adentrou o bar ajeitando o casaco, sentou-se e pediu uma xícara grande de café Istambul. Seus olhos pequenos aparentavam um cansaço imenso, os lábios grossos beijando a louça como se sorvesse dela alguma vida.
Uma jovem de quase um metro e noventa, botas altas, boina chamativa sobre os cabelos ruivos e olhos assustadoramente azuis entrou a seguir, sentando-se sem qualquer cerimônia em frente ao cansado Samihasa, cruzando as pernas torneadas envoltas numa legging negra, o vestido curto e o casaquinho provocantes desafiando a frialdade do lugar. Havia apenas o barman para atentar para sua beleza. Mas ele certamente a olhava, a água quente escachoando na pia sem que ele se apercebesse da urgência em conter o desperdício.
_Sam - disse a moça, pousando as mãos de dedos longos sobre as pernas como uma recatada aluna de tempos idos.
_Ash - respondeu o outro, segurando a xícara com as duas mãos.
A alvura da moça era soberba. Os lábios finos e o nariz davam um quê de felino às suas feições, as unhas impecáveis alongavam os dedos céleres, sempre solfejando uma melodia imaginária.
_ Long time no see - falou a beldade, exibindo dentes alinhados e de imaculada brancura - o que faz por essas bandas, Sam?
_Apenas de passagem - respondeu o outro, indeciso entre soprar ou não o café -
Não quero confusão, Ash.
_Imagino que não - tornou Ash, cardando a basta cabeleira com seus dedos de marfim
- Até mesmo porque você não é mais aquele. Dito isso, Ash apanhou xícara das mãos de Sam e, metendo o dedo, lambeu ruidosamente enquanto espreitava o barman, que já suava mesmo no frio do balcão.
Sam suspirou, pegou uma colherinha de café e dando de ombros indagou "importa-se?" Com a sobrancelha erguida, tomando de volta a xícara com um tom indisfarçado de mofa.
_ Cresça, Ash - disse, depois de experimentar o chocolate- bravatas estão em desuso. Mas em algo você tem toda a razão: estou cansado.
_Sua recusa em aceitar sua ruína - falou Ash, enquanto pedia uma dose de absinto ao barman - é o motivo do seu cansaço. Não há perdão para nós, Sam. Aceite e locuplete-se! Prevarique, fornique, abuse da gula... Preencha este vazio com a voracidade de seus apetites! Porque não tenta ser ditador como Azazel? Ou clérigo, como Chorabiel? Porque não mata, como Azradel? Olhe, eu pessoalmente gosto do que faço. Gosto disso que tenho, gosto disso que me tornei. A adoração dos homens alegra minha deformidade. Quanto ao amor... O aleijão de sua ausência criou a prótese da luxúria: Os mortais adoram, é algo universalmente aceito.
O riso amargo de Samihasa irritava Ash, mas vê-lo tão humilhado era tão divertido... Compensava mais do que qualquer coisa.
Jactar-se seria inútil, ou meter o dedo em suas feridas. Ser gentil era a única forma de tortura ainda não experimentada.... Que dia! Vibrava por dentro de sua beleza o espírito viperino e pérfido.
-Estou cansado, Ash... De vocês inclusive. Mas não leve isso para o lado pessoal, somos companheiros numa cela minúscula, a vida rastejando me causa estas claustrofobias...
-Cela redonda e azul... Ou é o que dizem estes cientistas siminescos. Minúscula, de fato. Monótona? Não no que depender de mim - Ash fitava o barman com olhos viciosos. Sua diversão, mesmo quando tão sutil, tinha em redor uma atmosfera nauseabunda. Dou-lhe minha opinião: apaixone-se, Sam.
_Isso não me traz conforto.
_Raios me partam, Sam, paixão não foi criada para dar conforto! São milhares de anos aqui, garoto, não me envergonhe!
Sam pediu uma dose de vinho da Colônia. Espesso, resistente à luz e um bouquet intenso, com sabor inicial frutado e um final remetendo aos lagares antigos de pedra e pés humanos. A voz de Ash parecia sumir enquanto as lembranças lhe vinham: meninas cainitas pisando a macega, as moças de Nod banhando-se no Eufrates, o sangue da virgindade de sua primeira mulher mortal... Que foi degolada por Gibreel quando saiu sua sentença, ao lado de seus filhos... Um sobressalto o trouxe ao presente, mas mãos da diva enlaçando as suas.
_Vi sangue demais, Ash.
_Sangue nunca é demais. Posso bebericar de sua taça?
_Peça uma, se te agrada.
_Sovina! Mas transijo. Querido, uma taça, sim? Sam, porquê essa renitência? Porquê esta lamúria? Apaixone-se! Arranje um enigma!
_Não há mais enigmas.
_Ora... Como não? A Máquina de Antikitera?
_Era de Arquimedes... Cópia de um original Persa, que era uma cópia....
_Certo, certo - cortou Ash- mas e a Mona Lisa?
_Eu sei e você sabe que ela deitou-se com Leonardo.
_Verdade... Mas e as Pirâmedes, como foram feitas?
_Foram feitas por homens, com rampas internas, de fora para dentro por 45 metros e depois de dentro para fora.
Ash resignou-se, suspirou, fez beicinho.
_Ele te escolheu para nos capitanear por isso - falou, com um suspiro - mesmo que o que acaba de dizer sejam besteiras, parecem besteiras irrefutáveis. Ande pelo meu território em paz, faça uso do que quiser, minha espada está a seu serviço: se quiser garotas - ou garotos, sei lá - faça-me saber.
_Ashmoday... -a voz de Samihasa tinha uma ternura estranha, quase como se os dedos de seu coração arranhassem a abóbada de castigo divino que o privara para sempre da antiga glória- o que eu procuro não está em seu poder. Sinto falta de algo qe você talvez sequer consiga se lembrar.
_O que seria, Samihasa? Não fira meus brios!
O olhar de Samihasa turvou-se de lágrimas, as únicas talvez que ainda não derramara em sua saga de amores perdidos, sonhos destroçados, revolta e tragédia. Nascidas de um desespero infantil, lágrimas com milênios de idade... Talvez as suas últimas lágrimas de anjo, que esperavam estas palavras tolas para se atirarem ao chão:
_A sensação de ver tudo do Alto!

Claudinei Soares

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